Maracanã

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terça-feira, 28 de setembro de 2010

geraldo vandre pra nao dizer que nao falei das flores



Em entrevista, Geraldo Vandré demonstra como o espírito pode acabar antes da vida


LUÍS ANTÔNIO GIRON

opinião, na revista Época...


Luís Antônio Giron


Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV


O compositor e cantor paraibano Geraldo Vandré é uma das figuras mais excêntricas que já conheci. Ou concêntricas, pois parece viver em torno de si próprio, de seu cotidiano de advogado e funcionário público aposentado em São Paulo. Muito inquieto, quase não fica parado, e fala demais. Seria chamado hoje de hiperativo. Em 1994, fui ver um show de Vandré no auditório da biblioteca Mário de Andrade em São Paulo, onde ele apareceu fantasiado de oficial da Aeronáutica e fez executar uma peça em homenagem à instituição, intitulada "Fabiana". Em seguida, entrevistei Vandré para a Folha de S. Paulo e até me entusiasmei com a suposta exclusividade do que ele havia me confessado sobre os mistérios que o cercavam. Depois fui informado que havia dito as mesmas coisas a um jornal de esquerda, não me lembro o nome. E eu me achando o máximo por extrair confissões do antigo ídolo...


Agora Vandré repete as mesmas declarações à Globo News, em uma interessante entrevista a Geneton Moraes Neto, que pode ser revista no site do canal pago. As declarações do músico de 75 anos foram anunciadas como inéditas e a resolução de um enigma. Mas ele tem dito as mesmas coisas há pelo menos duas décadas. Minha impressão é de que Vandré vive em círculos, repetindo frases para tentar exorcizar os seus traumas. À medida que se reprisa como ídolo, suas declarações vão perdendo a força de repercussão. Talvez eu esteja sendo demasiado cruel ao dizer o que vou dizer, mas me parece que Vandré é o exemplo de um mal que acomete alguns artistas: a morte da alma em vida.


É uma situação que imagino dolorosa e irreversível. Quando o espírito precede a morte física, sobra pouco a dizer. E é talvez por isso que Vandré diz as mesmas coisas o tempo todo. Disse de novo até que está compondo um poema sinfônico e que pretende gravar um disco em espanhol. A mesma ladainha, as mesmas falas que parecem ensaiadas por um ator. No livro Verdade tropical, de 1997, Caetano Veloso faz um retrato meio caricatural de Vandré. Mostra-o como um exibicionista histérico que queria capitalizar em cima das conturbações políticas. Caetano desconfiava da sinceridade do colega, isso no momento em que ele figurava como o ídolo máximo da chamada MPB, ao lado de Chico Buarque de Holanda – o único, aliás, a fazer frente então à inspiração igualmente incendiária de Chico. Os dois haviam se defrontado num festival em 1966, e empataram: Chico, com a marcha “A banda”, defendida por Nara Leão, e Vandré com a toada “Disparada”, em parceria com Théo de Barros, por Jair Rodrigues. Curiosamente, “Disparada” se grudou no imaginário popular, ao passo que “A banda” ficou meio esquecida em sua falsa ingenuidade. Apesar de tudo, Vandré foi um ídolo.
Mas e daí? Alguém se lembra de quem foi Vandré salvo por uma ou duas músicas? Ele representa a um só tempo o símbolo da explosão criativa com que a música popular brasileira marcou a história dos anos 60 no Brasil e do oco que se seguiu, nos anos 70. Dizia-se que ele havia sido torturado pelo exército quando voltara do exílio em 1973 e que fora forçado a gravar uma declaração, afirmando que a partir de então só voltaria a gravar canções de amor. Justamente ele, que em 1968 havia posto o ginásio do Maracanãzinho abaixo com a canção "Pra não dizer que não falei de flores (Caminhando)", defendida em um dos populares festivais da canção daquele tempo, o Festival Internacional da Canção da TV Globo. A música era curiosa: o tom de ladainha, lento e sem grandes alterações senão a da intensidade do canto, emoldurava um convite à conjuração contra o Exército Brasileiro – a instituição que, naquela altura, decidiu se voltar contra a população e impor um regime baseado na censura, na perseguição, na sevícia e no assassinato dos inimigos políticos do regime que era reimplantado, com o Ato Institucional número 5, o AI-5, que tolhia a liberdade dos cidadãos e impunha a violência como prioridade rotineira.

Eu tinha oito anos então, mas me lembro do carisma de Vandré e de como minha mãe admirava aqueles versos incendiários de “Caminhando”: “Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição/ de morrer pela pátria e viver sem razão”. Professora de História no interior do Rio Grande do Sul, minha mãe foi perseguida na faculdade onde lecionava e obrigada a trabalhar em condições precárias, lutando para suprir as necessidades de seus dois filhos. Mas resistiu como uma heroína, apesar de todas as condições adversas. Não se exilou, fez carreira, escreveu dezenas de livros, doutorou-se e dá aula até hoje, símbolo da resistência à ditadura que ela representa em sua terra. Entre as coisas que a ajudaram a se manter de cabeça erguida, além do amor à família, estava o canto de Vandré. Ela mostrava a meu irmão mais novo e a mim as músicas de Vandré – e conseguiu até mesmo tocar às escondidas um compacto simples com “Pra não dizer que não falei de flores”, que ela havia emprestado de um aluno. Era um tempo em que os ditadores censuravam as músicas e torturavam quem as ouvisse. Exilado na França, em 1970, Vandré gravou com o Quinteto Violado um LP bonito, Terras do benvirá, com canções longas e nostálgicas. Minha mãe mais uma vez deu um jeito de contrabandear o disco. O tempo ensinou que Vandré não passava de um mito, e fiquei até com um aperto no coração de relatar isso a minha mãe, também fã do Chico dos anos 60 e 70.


(Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras)

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